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raquel kogan

20.10 – 20.12.21


programação

Pontos de Vista: produção de imagens e o ambiente digital

Conversa com Raquel Kogan sobre #o.lhar

crítica

Arandu Porã (Sensível Sabedoria)


Assim como a chuva molha a terra e as plantas florescem, nós caminhamos semeando sabedoria em nossas crianças e jovens, seguindo os ensinamentos de nossos antepassados. Sabemos que atualmente vivemos uma emergente e complexa crise ambiental, a qual nos leva a questionar e a repensar o ser e o saber, resultando numa conscientização de que temos de reaprender a pensar e agir no mundo. No entanto, os seres humanos, numa incessante busca por compreensão, dominação, ordenação e controle sobre o meio e sobre si mesmo, acabou por desestruturar a natureza e acelerar o seu desequilíbrio.


Para refletirmos sobre os problemas que caracterizam nosso tempo, devemos partir do pressuposto de que somos parte de um todo vivo e nossa mente não está excluída da natureza, mas se encontra integrada a ela no complexo universo informacional da filosofia indígena, a qual muitos desconhecem, ou simplesmente negam a existência.


Faz-se urgentemente necessário um retorno da humanidade à natureza, colocando os seres vivos em um mesmo patamar, onde todos estão ligados, relacionam-se, interagem entre si numa imensa Teia. Pois, ao longo da história, o que a ciência fez foi fragmentar, dividir, separar tudo, baseada no desenvolvimento das capacidades, no padrão da racionalidade, resultando, atualmente, no afastamento dos seres humanos em relação à natureza.


As sociedades ocidentais estão percebendo que diversos pressupostos que as sustentaram por muito tempo estão levando a uma situação totalmente insustentável do ponto de vista da sobrevivência da espécie, principalmente no que diz respeito às condições ambientais. Uma das principais coisas que as sociedades indígenas têm, e que torna seu pensamento valioso, é justamente uma outra maneira de conceber a relação entre a sociedade e a natureza, entre os humanos e os não-humanos, uma outra forma de conceber a relação entre a Humanidade e o restante do cosmos, outra forma de ver, de sentir, de ser e estar no território. Para os Povos Indígenas, a natureza é quem dá sentido à vida. Tudo em seu equilíbrio. Como uma imensa Teia, na qual tudo está interligado, um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, mostrar a nós o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está para acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que, com sua delicadeza e sabedoria, vai nos guiando e nos ensinando como Bem Viver (Teko Porã) – um conceito filosófico, político, social e espiritual que expressa exatamente essa grande Teia, onde vivemos em equilíbrio, respeito e harmonia.


O mundo capitalista em que estamos inseridos nos faz esquecer quem realmente somos, não nos deixando olhar para o fundo de nossa essência para conseguir atravessar as barreiras do desconhecido. Junto a isso a imensa fonte de informações na qual estamos mergulhados, os maus hábitos alimentares, o egoísmo, o desamor e a falta de bom senso estão nos conduzindo a uma vida insana. A partir do momento que nos desintegramos da grande Teia da Vida, perdemos nossa sensibilidade de perceber e entender os males que nos rodeiam. Para os Povos Indígenas, todos os seres possuem uma essência e também possuem um dono, o qual deve ser respeitado. Muitos males do corpo físico, mental ou espiritual surgem devido ao desrespeito com esses donos.


No entanto, mesmo com muitos desafios e séculos de luta, os povos indígenas conservaram suas práticas de cura, e seu modo de conviver com a Mãe Terra de forma equilibrada. Isso precisa ser respeitado, e o povo brasileiro deve se despertar para as novas possibilidades de vida e reaprender a pisar sobre a terra, reaprender a caminhar de forma mais suave.


Toda essa complexa crise de relações que os humanos vivem hoje nada mais é do que reflexos de séculos de uma caminhada mal feita, pois, antes, quase todos viviam na natureza, com a natureza e da natureza. E hoje, as pessoas se desinseriram do meio, usam e abusam da natureza para sobreviver ou aliviar seu ego de consumo sem pensar que fazemos parte dessa imensa Teia, que não deve e não pode ser desfeita. Porém, ainda há tempo de reconstruirmos e de nos harmonizarmos. Um caminho é a educação. Mas a sociedade não indígena deve repensar sua forma de educar suas crianças, passando a valorizar o potencial contido dentro de cada uma, principalmente fazendo uma escola que seja útil para a vida das pessoas. Ouço muitos dizerem que a escola serve para nos tornar alguém na vida, porém, já somos alguém na vida e temos de usar as ferramentas escolares para nos tornarmos guerreiros. Guerreiros esses que possam compreender as práticas do Bem Viver e transformar o mundo à sua volta.


Muitas são as formas de perceber e olhar o mundo a nossa volta, mas sabemos que existe uma monocultura do pensamento que dita regras e reduz muitos saberes ancestrais. Na arte, na filosofia e nas ciências existe um pulsar que cria e transforma saberes e fazeres, senti-los e praticá-los depende de cada um de nós, na medida em que direcionamos nossos passos, nosso olhar, nossos sonhos e anseios.


Assim como os grãos, as pessoas precisam conhecer sua origem, a fala que habita em cada semente. Todo ser que consegue escutar a voz do silêncio, ouve as suas verdades. Há uma ponte existente entre o conhecimento visível, letrado e o saber que habita nas profundidades dos cantos, danças, trançados e em toda a complexidade da arte e espiritualidade dos povos nativos do mundo. Contudo, é necessário romper as barreiras da aparência, porque, enquanto alguns insistirem em se basear e permanecer presos no não ser das coisas (aparência), jamais chegarão à dimensão maior do verdadeiro conhecimento, da sabedoria dos que sabem e conseguem sentir sua própria sombra!


Nesse sentido, reflito sobre a delicadeza e a complexidade do olhar que nos põe a pensar sobre nossas realidades, outros mundos possiveis, outras possibilidades que nos circudam, uma vez que nos permitimos enxergar para além do que somos capazes de captar com os olhos. Dentro dessas minhas reflexões, trago uma gota de pensamento sobre o profundo trabalho de Raquel Kogan, que, por meio de sua arte, apresenta-nos uma possibilidade de nos questionarmos sobre a direção, a natureza e os sentidos do nosso olhar para a vida e para nós mesmos, para a sociedade e também para os outros seres. Desvendar a cortina que encobre o olhar interno da multiplicidade que habita o mundo depende de cada um de nós. As percepções são múltiplas, basta sentir!!!


Cristine Takuá

educadora e curadora