Os memes EXPECTATIVA/REALIDADE já são um clássico. Em suas milhões de versões, comentam ciclovias, restauros, casamentos, tortas de chocolate, presidentes, acrobacias, piscinas, tratamentos estéticos, empregos… Ao fazê-lo, lembram-nos que a realidade não é superior a outros regimes de existência (no mundo da expectativa, por exemplo, este texto seria certamente menos enfadonho). Portanto, há que se encarar o xis da questão: “o que seria da realidade, se não fosse a ficção?”.
Eis que temos vivido, nas platibandas do neoliberalismo pandêmico, o ocaso do heroísmo do Real, outrora simbolicamente sustentado desde o alto de sua inicial maiúscula. Adoentado já muito antes do coronavírus, o tradicional e portentoso Real tem murchado por vergonha, por impotência e por covardia mesmo. Longe de seus brados tão vitoriosos quanto masculinistas, sua voz trêmula mal consegue enunciar. Pouco a pouco, deixa de ser soberana em seu próprio reino, a realidade.
Enquanto esperançosamente habitamos o mundo das expectativas no aguardo da vacinação universal, na realidade, parafraseando Oiticica, “da ficção vivemos”. O ficcional nunca foi tão real: “Make Orwell fiction again”, pleiteava um meme que me cruzou o caminho, evocando um tempo no qual ainda podíamos nos refugiar na fantasiosa distinção entre ficção e realidade.
Foi no seio dessa distopia que, no dia 31 de julho de 2020, mais um perfil de Instagram foi criado, @newmemeseum. Emulando a identidade visual de seu primo, o New Museum de Nova Iorque, cuja heroica missão com cara de
slogan é nada menos do que “New Art, New Ideas” — sim, assim mesmo, com todas as iniciais maiúsculas —, em um de seus primeiros posts, a versão brasileira e memeira do “novo museu” foi logo dando o tom embaraçado de sua autoimagem por meio das etnográficas palavras da diva da performance no filme
Espaço Além — Marina Abramovic e o Brasil (2016): “Estamos aqui, basicamente, no meio do nada. É o Brasil”.
Com um constrangedor início no qual João de Deus, posteriormente condenado a 60 anos de prisão por crimes sexuais, reconhece mediunidade em Abramovic, o filme é uma quase vexatória expedição etnográfica em prol dos interesses espirituais da artista, percurso no qual ela busca curar-se e melhor compreender sua “missão”: “Como posso ajudar a ampliar a consciência através da arte?”.
O New Memeseum, em direção diversa e desde o rebaixamento de seu lugar “de nada”, sem uma milésima parte sequer do heroísmo missionário da artista sérvia, ocupa-se com o ofício menos glorioso de tratar do que, na arte, sobremaneira adoece ou alicia a nossa consciência. Não há muito do que se orgulhar, afinal.
Durante a pandemia, para além da ansiedade geral vivenciada e lançada sobre os artistas, os profissionais de museus foram demitidos, ficaram sem salários e encararam processos ainda mais severos de precarização. Enquanto o mercado de arte segue vendendo (e, em certos casos, inclusive mais do que antes), diversos museus fecharam para nunca mais abrir; outros não conseguiram captar recursos. Digno de nota é que, além da tragédia socioeconômica de nossas instituições, em sua esmagadora maioria, elas pouco fizeram para diretamente engajar-se na luta contra o coronavírus ou contra o protofascismo reinante.
— “Nada de novo no
front”, diriam alguns.
Na velha e tragicamente familiar realidade do campo social da arte, da indústria cultural ou do mundo dos museus, o Nem Memeseum aporta não na ânsia messiânica e civilizatória de transformá-la, senão para escancarar e debochar daquilo que, na arte ou a pretexto dela, não é motivo de exaltação, mas de constrangimento individual, público e generalizado. Zombando de nós, o museu instagrâmico caçoa de si mesmo não na chave da já vovó “crítica institucional”, mas desde a perspectiva ético-política dos memes.
Anônimo, o perfil do museu produz, compartilha e recria memes cujo assunto central é a própria arte — suas dinâmicas sociopolíticas, suas encruzilhadas éticas, sua desigualdade econômica, seu racismo estrutural, suas subjetividades esfaceladas, o machismo que nele impera ou o feudalismo cultural que nele se reinventa, dentre outros temas. Integra, assim, o intenso fluxo da fábrica memeira do mundo — o Brasil —, espiralando ainda mais a circularidade das reapropriações típicas das culturas digitais.
Quem acompanha o dia a dia do museu logo verificará que, nele, os públicos também são instituintes. Transformados em espaço de debate público, os comentários dos posts reivindicam conteúdos, apontam ausências, discordam entre si, criticam as perspectivas propostas pela instituição (isso sem mencionar o quão profícua deve ser a ouvidoria do museu via DM). Se rir é um ato político, a memeficação o potencializa.
Operando com dados da realidade sem, todavia, coincidir com a pretensão do Real, o meme é um entusiasta da ficção. Não da ficcionalização como supra-realidade, senão precisamente daquela perspicaz inflexão que, agindo desde dentro do que reconhecemos como real, lida com seus signos sem o compromisso de reverenciar seus poderes, soberanias ou sacralizações. Elabora, assim, inteligibilidades alternativas para compreendê-los, questioná-los e recriá-los: “o real precisa ser ficcionado para ser pensado” (Jacques Rancière). Memeficar o museu é, desse modo, rearranjar seus termos, ficcionando-os para que, nessa translação, eles possam ser vislumbrados desde outras perspectivas.
Os memes que nos fazem rir do museu, de seus agentes, de suas políticas e de suas representações não vão mudar os museus, mas podem colaborar para nos emancipar de suas ficções de neutralidade, sacralidade, legitimidade, excepcionalidade, liberdade, dentre tantas outras. Trata-se do gesto de “combater ficção com ficção”, como na formulação de Karl Ove Knausgård. As mesmas armas ficcionalizantes utilizadas não para renovar nossos votos e crenças no moribundo Real e suas narrativas heroicas, mas para esvaziá-lo da ambição de ser o protagonista central da elaboração de sentidos e de valores para as incontáveis, complexas e fugidias formas de existir.
Ficções para além da expectativa e da realidade.